sexta-feira, 3 de maio de 2019

Povo Puri - História e (R)existência

O povo Indígena Puri é originário dos 4 estados do Sudeste (RJ, Sp, Mg e Es). Ocupou tradicionalmente a extensão do Vale do Rio Paraíba do Sul.
O termo “Puri”, tem origem na língua dos Coroado, significando  “ousado”.  Isso dever-se-ia ao modo surpresa como esses indígenas atacavam seus inimigos . Os Puris e Coroados eram denominados um pelo outro da mesma forma.
Relatos de anciãos Coroado contam a sua origem étnica junto aos Puris. Segundo o depoimento de alguns anciãos, eles dividiam-se, antigamente, em três tribos; segundo outros, eles se subdividiam em apenas duas outras tribos; os Meritong e os Cobanipaque. Segundo as tradições orais os Coroado e os Puris teriam formado uma única nação, que se separou posteriormente em razão de uma rixa entre duas famílias importantes. Registros e análises linguísticas referentes tanto à língua falada pelos Puris quanto a falada pelos Coroados, devido a quantidade das mesmas palavras usadas e a grande semelhança no restante da língua, resultam em que trata-se de dialetos de um mesmo idioma e a língua Koropó integrante da mesma família linguística. Puris e Coroados partilhavam compreensão na fala utilizada entre eles. Por esta razão, os trabalhos produzidos acerca dos Puris, sua cultura e processo histórico, comumente apresentam associada a etnia Coroado. Também há apontamento da origem comum dos Koropós juntos aos Puris e Coroados
Os Puris pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê. Os grupos indígenas pertencentes ao tronco Macro-Jê, foram genericamente chamados Tapuia.

Os primeiros registros acerca dos Puris, datam da segunda metade do século XVI. O povo Puri se espalhava por uma extensa região, que incluía todo o vale do Paraíba do Sul, desde o atual estado de SP até a sua foz, assim como os vales de diversos afluentes como o Itabapoana, o Preto, o Pomba, o Muriaé e seus subafluentes. O território tradicional incluía diversas ramificações da Serra do Mar (entre RJ e SP) e as serras da Mantiqueira (RJ, SP e MG), das Frecheiras (entre os rios Pomba e Muriaé, RJ) e do Brigadeiro (anteriormente denominada “Serra dos Arrepiados”, a nordeste da nascente do Rio Muriaé, MG). Os Puri se estendiam também pelo rio Manhuaçu, adentrando o atual território do ES até o rio Doce, onde entravam em constantes confrontos com os Borum, designados genericamente como “Botocudos” no XIX.
No séc. XVIII, antes de serem vendidos como escravos, os Puris foram estimados em mais de 5.000 indígenas. No séc. XIX, foram aldeados em São Fidelis e na Missão de São João de Queluz..

No final do século XVIII e início do XIX, o avanço das fronteiras agrícolas em direção às terras do interior do Vale do Paraíba atingiram suas maiores proporções. O povo Puri, a partir principalmente da ocupação de suas terras tradicionais pelo latifúndio cafeeiro, sofreu grande diáspora[1]De um lado estava colocado a guerra justa[2], imposta aos índios bravos, –aqueles que não queriam ser recolhidos aos aldeamentos criados, de outro, havia a própria prática do aldeamento, que além de modificar o modo de vida desses povos (impactando hábitos, organização social e língua) ainda permitia que a mão-de-obra indígena fosse requisitadapara a realização de trabalhos que o governo entendesse necessários –à exemplo da participação indígena decisiva na abertura de estradas, na construção de grandes obras, como o Aqueduto da Carioca, a Casa de Fundição e o Senado, no aterro de áreas para  a abertura de novas ruas e em engenhos de particulares.Documentos primários e relatos de viajantes no século XIX, citam fracassos das tentativas de aldeamento dos Puri –por motivo de sucessivas fugas, ou morte da maioria deles em poucos anos; descrevem os Puris como “nômades por excelência”, sendo assim, antagônicos à vida sedentária no padrão dos aldeamentos.
Em 1811, objetivando enquadrar os Puris à “civilização” o governo atraiu um grupo de 2000 Puris sob promessas de ferramentas de ferro. Cercou-os com tropa e dividiram os membros de suas famílias e os distribuiu para serem escravizados em casas de particulares. Os Puris permaneceram por 8 dias submetidos à espancamento dos senhores de escravos da região, até que realizaram fuga usando seus conhecimentos da mata. Revoltados com a situação de mulheres e filhos sob o julgo de seus algozes, reuniram-se e atacaram as essas casas e todas as famílias portugueses que encontrassem nos arredores de Vila Rica.

O ofício do capitão comandante Henrique Vicente Louzada de Magalhães, informa a dificuldade de controle sobre o aldeamento da Paraíba Nova, devido a resistência do cacique Puri que havia estado no aldeamento de São Luiz mas abandonando o lugar, há alguns anos vivia com sua família nas matas e buscava atrair para junto de si os que ainda permaneciam naquela aldeia. O relato trata ainda de uma nova tentativa de convivência entre os agentes do Estado e o cacique vivendo no aldeamento de Paraíba Nova, também sem sucesso: “Dei a Vossa Excelência parte que ficava na diligencia de conseguir o cacique chamado Mariquita, da aldeia de São Luiz, que há mais de ano vivia com a sua família desertados da mesma com objeto de atrair à sua companhia alguns que ainda existiam na dita aldeia, [...] causando desassossego ao capelão [...] O cacique, e um irmão que tem, são rebelados e não há reconciliação que os conduz: o capelão duvida da redução da fé enquanto se não extinguirem estes dois, e durante a dominação deste não cessaram as dissensões e desordens da dita aldeia”[3]

A câmara de Mariana enviou à Secretaria de Estado da Marinha e de Negócios Ultramarinos uma representação na qual solicitava medidas de segurança à indústria e ao comércio referente À defesa dos colonos que se situavam no sertão e viam-se ameaçados pelos ataques dos Puris e Botocudos.[4]
“Com os outros índios habitantes no sertão da Paraíba Nova foi necessário praticar-se outra diferente providencia pelas irrupções, que faziam naqueles distritos, assolando as fazendas circunvizinhas, furtando os seus efeitos, apresentando-se armados em figura de guerra, atacando e matando a todos os que lhes caíam infelizmente nas mãos, de modo que a maior parte dos fazendeiros que tinham os seus estabelecimentos do lado setentrional do rio [Paraíba do Sul], os abandonaram inteiramente, por não serem suas forças capazes de lhes fazer a menor resistência, [...] necessário rechaçar estes bárbaros, no caso de se não sujeitarem.”[5]
Nesse trecho, justifica-se o cerco aos Puris da Paraíba Nova, devido a uma suposta ferocidade que os caracterizava. Devido às reações de resistência dos Puris realizando ataques às fazendas, foram constantes as reclamações enviadas ao vice-rei, “que autorizou a formação de uma milícia armada, constituída por pessoas da região e soldados. Nesses conflitos entre ao Puris e a milícia, foram utilizadas “armas bacteriológicas”, quando foram deixadas nos acampamentos indígenas roupas  contaminadas por varíola. As mortes foram tantas que no dizer de Joaquim Norberto Souza e Silva, “as torrentes caudalosas do rio Paraíba arrastavam cotidianamente os hediondos cadáveres das míseras vítimas Puri”
Do registro de Paraibuna, escreve o capitão João Pacheco Lourenço e Castro ao vice-rei:
“Meu senhor os gentios que moram nas vizinhanças deste Registro são os Coroados e Puris os quais são tão selvagens que não conhecem subordinação alguma...”.[6]

Importa destacar que apesar de todos os males, mesmo nos aldeamentos, grupos indígenas não se resumiram unicamente a condição de dominação; também agiram sobre esses espaços enquanto agentes de suas histórias, ressignificando-os como espaços indígenas e empreendendo posteriormente lutas na sua manutenção. Acionam estratégias de diferenciação na relação com a sociedade envolvente, limites étnicos, manutenção ou estabelecimento de lideranças indígenas, resistência aos recrutamentos de força de trabalhos através das fugas. O aldeamento foi um espaço cristão e português, mas também indígena, fazendo-o meio de reestruturação de identidade”
Em correspondência enviada à Dom Fernando José de Portugal, o diretor de índios José Rodrigues da Cruz expõe que  indígenas  da Nova Aldeia dos Coroados  chefiados pelo cacique Bocumam, reivindicavam seus direitos diante do assassinato de 3 índios, cometido por moradores daquela Capitania de Minas Gerais. Exigiam a captura e morte dos autores do acontecimento. Na falta das medidas reivindicadas, se retiram todos da aldeia para o sertão.[7]

José Otávio Aguiar, abordando os efeitos da catequização, relativiza a suposta conversão dos indígenas Coroados, que aparentava tratar-se de omissão como estratégia de sobrevivência.[8] Informa que os Coroados mantinham enterrando seus mortos fora do cemitério cristão, segundo suas tradições.

As missas e batismos por seu conteúdo ritualístico aparentavam despertar interesse nos indígenas, mas comumente tratava-se de estratégia com vistas a evitar perseguições, enquanto na intimidade da nação se mantinha os valores culturais e religiosos escondido dos brancos que se enfureciam ao constatar a sobrevivência cultural. Incorporar alguns valores da cultura dominante também representou uma tática de sobreviver culturalmente. Atacados de forma violenta pelos colonos há décadas, quando contatados de forma menos explicitamente violenta pelos missionários eclesiásticos, cedem superficialmente a algumas expectativas desses, para preservar um espaço de sobrevivência.
Na observação feita por Spix e Martius quando em visita aos Coroados e Koropós:

“Na verdade, não é raro recorrerem esses homens da natureza para casamento e para batismo dos filhos; todavia só os atrai ali a cerimônia de culto, que eles presenciam admirados sem demonstrar emoção nem reflexão [...]”

A política pombalina fomentou a mestiçagem com a introdução da presença de brancos nos aldeamentos. Casamentos entre indígenas e africanos escravizados também foram induzidos e até mesmo forçados por donos de escravizados, buscando assim, o aumento de mão de obra disponível, alegando direito de propriedade sobre as crianças geradas.

Contudo, as uniões entre indígenas e brancos, indígenas e negros também poderiam ocorrer fora do alcance de influência do Governo e fazendeiros. Um destacado exemplo de relação interétnica amistosa, espontânea, entre os Puris e os negros, aparece na história de Vuitir, o líder Puri que fez parte da formação do aldeamento de São João de Queluz, na província de São Paulo em 1800. Inconformado com os maus tratos dispensados aos africanos escravizados presente no aldeamento e trazidos pelo diretor de índios Januário Nunes da Silva; Vuitir reivindica que cessem os maus tratos dispensando aos negros. Percebendo sua impotência diante daquela situação e não aceitando conviver com aquela realidade, Vuitir vai embora do aldeamento, volta para as matas. Não se tem mais notícia de Vuitir, que acaba se tornando devido a sua atitude, um personagem mítico para os negros escravizados, que passam a chamá-lo de Mongo que em Banto significaria Protetor que passam a invocá-lo em seus cantos amaldiçoando o feitor.

“Das festas religiosas, de Santa Cruz, de Santo Antônio, com ofícios celebrados, diante do oratório, ou na capela da fazenda, pelo padre, especialmente, vindo da cidade, os escravos participavam de seus lances ao ar livre, do foguetório, e cantavam em torno da fogueira, dansavam jongo, até tarde da noite, com bom suprimento de cachaça:
Passei corgo, passei rio, subi morro e passei mato,
Vi a cruz de Passa Quatro, vi cabôco frechadô;
Andei perdido no sertão do Embaú, Fui mordido de urutu...
Mongo Veio não vortô
Em coro triste de vozes todos repetiam: "Mongo Veio não vortô”.

A figura de Mongo véio resistiu ao tempo e em meados de 1940 o escritor J.N, Mello de Souza, numa festa do 13 de maio em Jataí, ouviu em um jongo esse canto que recordava o “véio” Puri.

De qualquer forma, a miscigenação, voluntária ou não, se configurou argumento no sentido de negar a condição de indígena. A extinção dos aldeamentos, transformando-os em Vilas e Freguesias, foi fundamentado justamente na ocorrência da mestiçagem; operada pelas Comissões de Demarcação das Terras públicas. Essas comissões foram criadas pela demanda originada pela Lei de terras de 1850 para a identificação e oficialização das terras de aldeamentos, e usavam como critérios quanto a legitimidade no reconhecimento do território às populações indígenas, o diagnóstico do grau de mestiçagem entre esses e os não-indígenas, além da conferência se os indígenas estavam inseridos no trabalho formal. A partir de verificado casamentos entre não indígenas e indígenas, e/ou que esses últimos passavam a trabalhar no mercado de mão-de-obra local, suas identidades enquanto indígenas eram deslegitimadas e os aldeamentos extintos. A classificação atendia aos interesses e instrumentos de dominação disponíveis.

Quanto ao programa assimilacionista e homogeneizador, ocorrem resistências várias, desde fugas à resistências culturais adaptativas e/ou reinvenções culturais em contraposição. Vânia Moreira destaca que ocorria por parte dos indígenas a aceitação dos casamentos mistos, também como uma estratégia de se manterem sob as terras das aldeias: “(...) os índios acabaram invertendo a proposta de Pombal, e usando os casamentos mistos para fortalecer suas linhagens e comunidades. Queriam assimilar os portugueses para garantir o controle indígena sobre as terras e os recursos de suas respectivas comunidades (...).”
Na política do Estado, o indígena tinha sua identidade considerada apenas por uma geração: seus filhos, mesmo tendo pai e mãe indígenas, passavam a ser classificados “pardos”.Ao mesmo tempo, a hostilização aos indígenas, à exemplo dos Puris, fez com que muitos ocultassem e mesmo negassem sua identidade étnica como estratégia de sobrevivência, o que percebe-se nas oralidades coletadas.

A documentação a partir da década de 30 do século XIX demonstra o desaparecimento dos Puris dos documentos oficiais, aparentando um quadro de extinção. Porém na década de 30 os Puris viviam em Campo Alegre, alguns na Vila Resende. Livros de batismos da matriz de São Vicente Ferrer[9], demonstra que as crianças indígenas passaram a ser batizadas como pardos e que o último Puri que teve sua identidade étnica reconhecida se chamou Victoriano Bori Santará.[10]Os remanescentes e descendentes, ainda que apresentando características físicas e/ou mantendo costumes, negam esta ascendência, temendo pelo preconceito. Até hoje, é possível perceber o receio da população, principalmente rural, em admitir esta relação, quando perguntados sobre a origem familiar e parentes mais antigos.

Os Puris, povo indígena de grande expressão no Vale do Paraíba, foram preteridos da historiografia a partir do fim do XIX; e assim como variados povos enquadrados como extintos, vem há gerações resistindo à negação de sua condição de existência.
A memória histórica acerca do povo Puri é encontrada nas regiões do Vale do Paraíba, herança passada à cada nova geração, e presente na atualidade. Isso se verifica por aspectos da cultura Puri que são componentes também daquele universo cultural. Em Resende, na área do antigo aldeamento Puri São Luis Beltrão, parte dos habitantes se reconhecem nesse pertencimento étnico e chamam de “Aldeia” aquela localidade, acionando uma significação de permanências, continuidades em contraposição à ideia de encerramento e ruptura.
No arquivo da paróquia de Santo Antônio de Pádua, Joaquina Maria consta em 1902 como o último registro oficial de indígena Puri.

A extinção dos Puri, é contestada por diversos autores ao longo do séc. XX: o professor Alvaro Astolpho de Oliveira, no seu livro Geografia do Estado de Minas Gerais de 1929, relata um aldeamento Puri na bacia do Rio José Pedro, no município de Caparaó; o escritor Paulo Mercadante descreve em seu livro Crônica de uma Comunidade Cafeeira, a presença de grupos Puris pelas matas de São Francisco, Divino e Cachoeira do Boi, na década de 40; o historiador Marcelo Lemos coletou, em 2013, depoimentos de habitantes de Carangola sobre a aldeia Puri existente dentro de uma fazenda, na mesma área rural conhecida como Cachoeira do Boi, na década de 50 do séc XX.
Esses registros corroboram para a percepção de que o paradigma da extinção da etnia Puri trata-se de um processo de invisibilidade de identidade conduzido pelo posicionamento do Estado Brasileiro, através das novas leis relacionadas à posse de terra num processo de cooptação de territórios Puris, que para tanto necessitava se fundamentar na negação da existência dessas identidades, portanto suprimidas dos documentos e reconhecimento oficial.

O censo do IBGE 2010 registrou 675 Puris com presenças nos mesmos 4 Estados de ocupação tradicional Puri (Rj, Sp, Mg e Es)

Atualmente a etnia Puri possui 2 comunidades em áreas rurais, uma escola, reconhecimento oficial a níveis municipal e Estadual e 2 associações; Associação de Agricultores Familiares de Araponga e Associação de Remanescentes Índios Puri de Padre Brito. A Associação de Agricultores Familiares de Araponga teve início na década de 80 do século XX, e foi responsável pelo assentamento de mais de 200 famílias em pequenas propriedades rurais, através do que chamam Conquista de Terra em Conjunto. Mediante essa estratégia de compra coletiva de terra, as famílias conseguiram permanecer em sua região de ocupação tradicional Puri. Entre os compromissos listados aos membros, está o de assumir a tradição da cultura Puri do trato com a terra. Essa associação também foi responsável pela criação da EFA Puris (Escola Família Agrícola Puris), uma instituição de Ensino Médio Técnico, onde conhecimentos indígenas no trato com a terra e o meio-ambiente dialogam com técnicas modernas de agroecologia e manejo sustentável dos recursos naturais. Ainda sobre a cidade de Araponga, importa destacar a criação do CEPEC (Centro de Estudos e Promoção Cultural), tendo desde a idealização e fundação, a presença de Puris da região. O trabalho desenvolvido se destina ao registro e valorização da cultura tradicional da região da Serra do Brigadeiro (antes, Serra dos Arrepiados), o que inclui aspectos da cultura Puri preservados entre a população local –como a tradição ancestral Puri de banhar as crianças pequenas em sangue de tatu.

              Em Barbacena, a comunidade Puri de Padre Brito é reconhecida pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Barbacena – COMPHA como Patrimônio cultural imaterial, decreto nº 7.937/2016.  Além do reconhecimento oficial, a prefeitura inseriu ao seu calendário o Festival da Cultura Indígena. Decreto nº 8.286 de 2018. O Festival anual realizado na comunidade promove a História e Cultura do povo Puri e está em sua 3º edição. Na única escola da comunidade a professora dedica parte da aula aos estudos da cultura Puri. As crianças de 4, 5 anos cantam na língua Puri, canções dos seus antepassados.


No meio urbano, na cidade do Rio de Janeiro, a etnia Puri está estruturada em movimentos organizados: Resistência Puri, Ressurgência Puri e Txemím Puri. Esses movimentos atuantes na cidade do Rio se deram a partir do contato desses Puris com a Aldeia Maraká’nà, onde integraram a história do aldeamento e também consolidaram suas histórias identitárias em meio ao movimento indígena presente na cidade e reconhecimento por parte de outros povos. O Txemím Puri compõe o Resistência Puri –que atua também no Estado de Minas Gerais –constituindo-se  um Grupo de Pesquisa e revitalização da Língua Puri, resgate e preservação da História e Cultura Puri; idealizado pelo Historiador Tutushamum Puri a partir de pesquisas acerca da língua Puri iniciadas por ele em 2010, momentos antes de sua chegada na Aldeia Maraká’nà [11]  trazendo consigo o primeiro resultado de suas pesquisas de retomada da língua, seu canto Petára, o primeiro canto contemporâneo originado na própria língua Puri. Antes disso, o primeiro contato de Puris com sua língua ancestral na contemporaneidade, se deu na cidade mineira de Araponga, no cenário da Dança de caboclo, uma dança folclórica presente em vários Estados brasileiros e remonta às ações jesuíticas coloniais. Em Araponga, essa manifestação cultural foi ressignificada em sua relação com o povo originário Puri, assumindo conotações próprias. Nomeada pelos Puris da região como “Folguedo dos Arrepiados”, em menção ao apelido que os Puris historicamente receberam no local, representa a preparação de um guerreiro, expressando a caça, as lutas e a habilidade de fuga. Ginico Lopes foi quem encabeçou a organização da dança por décadas, até sua morte em 1990; seis anos depois, seu filho Jurandir assume o lugar que o pai deixara vago. A partir das canções que aprendera com o pai, Jurandir Puri passa a traduzir para o Puri as canções em português da dança, utilizando os registros de oralidade Puri do século XIX. Sua primeira tradução, o canto Ho! Puky, ah lekáh Txorê. Além dessa tradução, Jurandir musicou a letra de um canto Puri registrado no século XIX e o estendeu com 2 frases em Puri, o canto “Ho! Bugure”.

Um século após a interrupção do uso da língua ancestral, os Puris realizavam sua retomada linguística prioritariamente a partir da produção dos cantos. As releituras de Jurandir chegariam ao Rio de Janeiro, levadas por Dauá Puri à Aldeia Maraká’nà, na primeira década do século XXI.
Em 2018 é composto o Txemím Puri, grupo de estudo da língua, formado unicamente por Puris, como o desígnio de retomada da língua não apenas nos cantos mas de torná-la viva novamente na comunicação plena de Puris na contemporaneidade. Para isso, realizam então o trabalho de análise dos registros da língua, tradução dos registros até então acessados por Puris somente nas grafias dos coletores alemães e franceses –o  que impossibilitava a compreensão da real sonoridade das palavras e, por consequência pronúncias equivocadas, examinaram e definiram seleção de versão de palavras –com 2 ou mais versões registradas –para o uso comum ao grupo, pois um uso diversificado por cada Puri inviabilizaria o entendimento e por conseguinte a uso da língua da comunicação, sistematizaram uma grafia em conformidade com escrita referente ao tronco linguístico Macro-Jê, identificaram os elementos estruturantes e regras próprias da língua para preenchimentos das lacunas dados os registros incompletos, e em 2019 disponibilizaram o primeiro vocabulário atualizado do Kwaytikindo (idioma em Puri), produzido de forma inteiramente autônoma, coletiva e interna da etnia.

No decorrer deste trabalho, foram encontrados casos de sobrevivências de palavras Puris reconhecidas e confirmadas por demais Puris das regiões em questão, ainda apresentando estrutura e sonoridade condizentes com a fala de nossos ancestrais, não obstante a presença em dada medida, de modificação inerente à natureza dinâmica e viva da língua em todo grupo social; e outros casos que, após conferidos, identificou-se tratar de criações desvinculadas com a língua e cultura ancestral Puri, por parte de alguns dos nossos que lidam forma utilitarista e comercial com a ancestralidade e, se aproveitam da vulnerabilidade da nossa situação linguística para tentar obter um reconhecimento individual indevido.
As sobrevivências de palavras Puris em coleta de oralidade, integram o vocabulário atualizado da língua Puri.


[1]O termo diáspora se refere à dispersão de um povo em consequência de perseguição política, religiosa ou étnica. Tal definição serve para pensarmos a situação dos povos indígenas no Brasil, que desde o início do processo de colonização vivenciaram constantes movimentos de fugas para outras áreas procurando escapar do julgo lusitano. Essa fuga, ou melhor, esse abandono de um determinado território, não implicava, obrigatoriamente, no abandono de determinadas tradições sócio-culturais que caracterizavam os indígenas. A mudança do lócus não conduz a uma descaracterização total, apenas parcial, já que adapta-se para sobreviver.  Entretanto a diáspora indígena foi mais do que uma mera troca de lugar, pois foi forjada por lutas sangrentas que violentavam não somente o próprio corpo indígena, como também sua forma de produção cultural.  HALL, Stuart. Da diáspora. Tradução: Liv Sovik. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003.
[2]A chamada “guerra justa” consistia no ataque armado aos territórios indígenas pelas tropas, que realizavam capturas incluindo mulheres e crianças. Os indígenas capturados se tornavam propriedade dos seus captores e podia ser vendidos como escravos aos colonos, à Coroa Portuguesa e aos próprios missionários. Era ao mesmo tempo uma operação de recrutamento de força de trabalho e retirada dos indígenas das áreas de interesse. Em carta de 5 de julho de 1559 ao governador Tomé de Souza, o padre Manoel da Nóbrega  reconhecia esse duplo objetivo, ao recomendar que a terra e os indígenas fossem repartidos entre os colonos que ajudassem a conquistar e senhorear. FREIRE e MALHEIROS. FREIRE, José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro, EDUERJ, Rio de Janeiro 2010.
[3]Ofício do capitão comandante Henrique Vicente Louzada de Magalhães, de Campo Alegre. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico, 1854, Vol. 17, p. 500 (14/08/1791).
[4]AHU-MG. 1801q30q12. Cx. 160, doc. 82. In: LAMAS, Fernando. Os indígenas de Minas Gerais: Guerra, conquista da terra, colonização e deslocamentos. 2012.p.230.
[5]Relatório de Dom Luiz de Vasconcellos e Souza. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1860, Vol. 23, pp. 182-3.
[6]Ofício de João Pacheco Lourenço e Castro ao vice-rei do Brasil, Conde de Resende, informando sobre os produtos da indústria indígena no distrito do Registro da Paraibuna, BN, Seção de Manuscritos Códice 07, 4,045 n°1 (12/08/1797)
[7]Ofício de José Rodrigues da Cruz, ao vice-rei dom Fernando José de Portugal, AN, Fundo 86, Códice 97 Vol 1, nº 279 (25/05/1804) (Carta de José Rodrigues da Cruz ao capitão Miguel Rodrigues da Costa, AN, Fundo 86, Códice 97, Vol 1, nº 121 (04/05/1804)

[8]Algumas estratégias de enfrentamento por meio de aparente aceitação foram abordadas por Eduardo Viveiros de Castro, ao analizar textos de Manoel da Nóbrega e Antonio Vieira sobre as dificuldades enfrentadas para se “catequizar” os Tupi nos séculos XVI e XVII. CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e A murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo,  1992.
[9]Livro de Batismo da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima – Antiga São Vicente Ferrer. Livro de Batismo. 1884.
[10] MAIA João Azevedo Carneiro. Do Descobrimento de Campo Alegre até a Criação da Vila de Resende, CCMM, Resende, 1998, 2º edição. In. OLIVEIRA, Enio Sebastião Cardoso de. O paradigma da extinção: Desaparecimento dos índios Puris em Campo Alegre no Sul do Vale do Paraíba. Anais do XV encontro regional de história da ANPUH-Rio.
 [11] Aldeamento em contexto urbano na cidade do Rio de Janeiro iniciado em 2006 através da ocupação do antigo prédio do Museu do Índio até então abandonado e em vias de demolição pelo Governo Estadual, por parte de indígenas de diversas etnias representantes de variados Estados Brasileiros, contra a sua demolição e em defesa da legítima destinação do espaço à causa dos povos indígenas. A recuperação do prédio, abandonado pelas autoridades, para que abrigue um banco de sementes nativas, um local de guarda de cultura material e imaterial dos povos originários, uma Universidade Indígena para o ensino dos saberes, histórias e culturas indigenas, a partir do protagonismo dos indígenas e da aplicação dos métodos de ensino e aprendizagem tradicionais das culturas indígenas. O histórico do imóvel torna inquestionável seu valor histórico para os povos indígenas e o indigenismo nacional.O espaço foi doado por Duque de Saxe ao Império para nele ser instalado serviço de estudo de sementes nativas e seus domesticadores (os povos indígenas). Em 1910 passou a abrigar o Serviço de Proteção ao Índio (posteriormente FUNAI) e de 1953 a 1978 o Museu do Índio, o 1° da América Latina.













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